quinta-feira, 15 de setembro de 2022

Carta para a Vida

 

Querida Vida


Há dois meses, eu acreditava que nossa parceria estava terminando.

Até escrevi uma mensagem para a Dona Morte, preparando minha chegada ao Reino dos que já se foram.

Mas ainda havia uma carta neste jogo.

Portanto, aqui estou de volta, após novo tratamento, e com esperança de ter um período de tranquilidade, por mais curto que seja.

Quando pensei em lhe escrever, lembrei-me de que vários compositores já o fizeram, certamente com muito mais competência.

“Gracias a la vida”, de Violeta Parra, parece esgotar o tema. Depois dela, fica difícil ser original. Ironicamente, um ano após escrever essa canção, a autora se suicidou, incapaz de enfrentar o envelhecimento.

“My way”, eternizada por Frank Sinatra, tem um trecho, em especial, que me define:

“Arrependimentos, eu tenho alguns, mas fiz o que tinha que fazer, e fiz do meu jeito”.

Para Gonzaguinha, a ordem é “viver sem medo de ser feliz” e “a beleza de ser um eterno aprendiz”.

E, o que dizer de “Imagine”, de John Lennon, que descreve como este mundo deveria ser...

Diante de tantas feras, fica difícil escrever algo original.

Mas vamos lá.

Há alguns dias, fitando meu retrato aos 23 anos, me perguntei o que eu, aos 72, diria àquela jovem.

A resposta veio de imediato:

_ Vai ser foda, mas vai valer a pena!

E, apesar de todos os percalços do caminho, posso dizer que valeu e tem valido.

Você é uma excelente professora. Se prestarmos bem a atenção, cada dia traz um novo ensinamento.

Otimista por natureza, alguns amigos me chamam de Poliana.

Tenho a capacidade de enxergar o lado positivo dos acontecimentos.

Vamos a alguns exemplos:

Perdi minha mãe aos treze anos. Foi a maior perda de toda a minha vida.  Ao guardar luto fechado, minha família me obrigou a abrir mão de qualquer divertimento – cinema, passeios. Com isso, minha adolescência foi muito triste. Em compensação, fiz amizades que duram até hoje, passados mais de cinquenta anos.

Minha avó materna passou por cima da dor inigualável pela perda de sua filha mais velha- minha mãe, para me acolher.

Meu pai dormiu num sofá cama da sala por nove anos, para me dar conforto. Apenas eu e meus avós dormíamos nos quartos do pequeno apartamento alugado, após vários anos morando em casas de fundos. Sempre gostei de estudar e meu pai fez inúmeros sacrifícios para que nada me faltasse, desde a escola regular até cursos de Inglês, Piano, Corte e Costura e Datilografia. Devo a ele eu ter me mantido firme na profissão de professora.

Minhas tias, irmãs de minha mãe, fizeram o possível para substituí-la, assim como a família do meu pai.

As mães de amigas também me deram colo inúmeras vezes.

Meu casamento durou muito pouco, mas me trouxe um tesouro, meu filho que, por sua vez, me deu uma neta maravilhosa e uma nora que considero como filha.

E, há vinte anos, já cinquentona, contra todas as probabilidades e desafiando as estatísticas, conheci, pela internet, meu companheiro de jornada, parceiro em todos os momentos.

Passei por muitas dificuldades financeiras, mas cheguei à aposentadoria com um rendimento que me proporciona qualidade de vida.

Estou completando cinco anos de luta contra uma doença extremamente agressiva. Minha expectativa de vida, após o diagnóstico, era de, no máximo, dois.

Tem sido uma verdadeira montanha russa, com notícias boas e ruins se alternando. Viagens, internações, tratamentos convencionais e outros nem tanto, Covid, tudo junto e misturado.

Como Vinícius, nosso poeta maior, fez em seu “Samba da Bênção”, tenho que fazer reverência ao time de profissionais da saúde, amigos, família, minha “Governanta”, que têm me dado suporte indispensável nesta trajetória.

Agora, neste setembro chuvoso, estou diante de um novo período de “férias”, cuja duração ninguém sabe, mas pretendo aproveitar cada segundo.

Mas não estou sozinha: quem sabe quando vai desembarcar deste trem que nos conduz a um fim inevitável?

Só tenho uma pergunta: existe Destino, Carma, ou somos nós que “fazemos o caminho ao caminhar”?

 

Caraguatatuba, setembro de 2022

 

 

Carta para a Morte

                          


Olá, como vai?

Trabalhando muito, não é mesmo?

Pandemia, guerra, violência, tráfico, milícias, fome, miséria...

Sei que em breve nos encontraremos.

Tenho muitas perguntas e nenhuma resposta satisfatória.

 Como dizia Guimarães Rosa: “não tenho certeza de nada, mas desconfio de muita coisa”.

 Puxe uma cadeira e vamos conversar.

 Sei que preciso de paciência.

 A cada dia vejo minha mobilidade ser reduzida.

 Percebi que não posso mais fazer viagens longas. Paciência, pois moro num paraíso e conheci boa parte deste mundo. Por sorte, quando este não tinha virado de ponta cabeça.

Em seguida, percebi que também não posso mais fazer voos domésticos e até as viagens curtas se tornaram difíceis por causa da sonda na uretra, necessária para evitar a obstrução causado por outra massa que apareceu há dois meses. Paciência!!!!

Como se não bastasse, a Covid me pegou. Não foi muito violenta, mas assustou. Paciência!!!!

No entanto, apesar de todas essas intercorrências, os órgão vitais continuam funcionando, o que sugere um caminho longo até o fim. 

O sentimento que toma conta de mim é o medo.

Medo da dor, do mal estar, da fraqueza, da dependência mas, acima de tudo, da demência.

Com tantas perdas nos últimos anos, também tenho medo de perder meu filho, marido, neta!

Tanta gente que nem estava doente passou na minha frente...

Vamos combinar umas coisinhas:

Venha me buscar antes dos meus entes queridos;

Não me faça sofrer demais. Quero ir embora com dignidade.

E a pergunta que fica no ar:

Será que existe alguma coisa depois?

 

Caraguatatuba, inverno de 2022

 

 

 

 

 

 

 

 

quarta-feira, 11 de novembro de 2020

A MARIPOSA FACEIRA


Certa mariposa faceira apaixonou-se perdidamente por um lampião.

Todas as noites ela esvoaçava à sua volta, esperando que ele desse alguma esperança àquele amor nascido do olhar, alimentado pela ilusão.

À medida que crescia a luz do lampião, aumentava o amor da triste mariposa.

Insatisfeita pela espera inútil e por sua vida vazia, resolveu, certa noite, aproximar-se mais dele, na tentativa de fazê-lo sucumbir ao seu fascínio.

Conseguiu seu intento, mas o lampião foi tão ardente que consumiu a mariposa no fogo de sua paixão abrasadora.

Foi tão cruel em sua indiferença, foi tão insensato ao ser tocado pela pureza do amor, que destruiu quem mais o amava.

Mas pode-se bem compreender: lampiões só têm ardor, não têm sentimento, não têm amor.

 

21/09/1971

 

terça-feira, 27 de outubro de 2020

Testamento

TESTAMENTO

Estando de plena posse de minhas faculdades mentais e não tendo bens materiais a distribuir, deixo os seguintes legados:

Ao meu filho, meus cromossomos;

Aos meus amigos, a saudade;

Aos meus inimigos, o alívio;

Àqueles que me amaram, o carinho;

Aos que me odiaram, a indiferença;

Àqueles que me ampararam, a gratidão;

Aos que me negaram o apoio, o desprezo,

À História, a ausência;

E àqueles que um dia me estenderam a mão e me proporcionaram momentos felizes,

                                      OBRIGADA!

 

1980